quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A MEMÓRIA DE QUEM VIVE EM HOSPEDARIAS

Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua
as publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa memória. A
vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a
prova de ter a memória fraca seja exatamente não me acudir agora o nome
de tal antigo; mas era um antigo, e basta.
Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém
que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem
nomes, e somente raras circunstancias. A quem passe a vida na mesma casa
de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é
que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os
que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino
com a das que enfiei ontem Juro só que não eram amarelas porque execro
essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.
E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos
livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando
leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em
chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não
achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas
lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os
seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na
bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha
com uma alma imprevista que tudo se acha fora de um livro falho, leitor
amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher
as minhas.
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Convivas de Boa Memória - Dom CasmurroMachado de Assis

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

SARTRE É NADA!

[Sartre em; O ser e o nada, ou qual quer bobagem dessas, eu não me importo eu não ligo!

Ensaio ontológico sobre a tensão argumentativa noturna nos ante – Sartreanos e etc.etc. e tal.]

É madrugada. A poeira das revistas e livros antigos faz descer do meu nariz um tipo de catarro engraçado que brilha bonito. É mais viscoso que os catarros normais e observo sua lenta descida até o pano de chão que arrumei para apará-lo.

Enquanto vejo esta bela secreção sair de dentro de mim, penso em como é difícil juntar umas letrinhas pra dizer as coisas nas quais acreditamos. Assim, sem parecer nem menos do que você é. “What is it you want to change?” (o que é que você quer mudar?). Aposto que, toda vez que as letrinhas teimam em sair da sua cabeça você pensa nessa frase e ela se repete exaustivamente ai dentro.

Sartre repousa pesadamente sobre minha mesa, no interior das mais de quinhentas páginas de “O Ser e o Nada”, que eu não sei se vou ler (provavelmente não, o que você acha?). Conforta-me a idéia de que talvez Sartre também não soubesse o que “O Ser e o Nada” mudaria. Conforta-me ainda mais a certeza de que, mesmo que eu quisesse, não me meteria a escrever mais de quinhentas páginas e ainda assim não saber o que muda depois de tudo.

Acho que não é muito adulto brincar de elevador com o próprio catarro. Mas sei lá, a filosofia, pelos mesmos motivos, também não é muito adulta. Cada um defende aquilo em que acredita.

Eu acredito no catarro. Você pode acreditar em Sartre ou no seu catarro. O fato é que, tudo que preciso é de um lenço! Para Sartre, conseguir umas letrinhas era bem mais fácil do que é pra gente (será?). E que diferença faz? Bem, não há nenhuma diferença entre Sartre e eu, a não ser a de que ele precisaria de zilhões de argumentos para explicar que o meu catarro existe, enquanto eu simplesmente sei que ele existe.

Edvaldo Ramos Leite
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Texto publicado inicialmente no zine “Plano 9”, um dos zines mais azilantes , pirados e nonsence que já surgiu aos meus olhos aqui em Fortaleza. O zine teve ao todo quatro números e rolou pela cidade pelo menos por um ano eu acho. Já tinha colocado este texto em meu antigo blog, mas acabei lembrando e relendo nesta madrugada onde as coisas nem vão nem ficam por completo.
Faz falta certas coisas nesta cidade. Como certos zines, certas bandas ou certas pessoas. Faz falta encontrar com o Edvaldo ou com o Fábio, que eram as duas cabeças pensantes no zine. Te toda forma, se tudo continua... Você, o que quer realmente mudar? No que realmente acredita? Filosofia, história, psicologia ou em seu próprio catarro?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

OBS...

Bom, já que estão (quase) todos falando nele e ainda dá tempo, vamo nessa.
[Ilustração bonitinha de Patrick Moberg, que roubei do Da Groselha.]

domingo, 16 de novembro de 2008

O PREFERIDO DE APOLO

Não pense na solidão desses dias tropicais. Nem pense na imensidão de pessoas desconhecidas se espremendo entre ruas e automóveis. Pare de pensar no calor insuportável que faz nessas terras iluminadas. Nem lembre a ausência de ventos, dos quais deveríamos ser uma dádiva. Porque pra falar a verdade, o mundo é imenso. E por mais estranho que pareça tudo faz sentido. Quando o Sol beijar seu rosto, num final de tarde de domingo. Talvez você tenha certeza que de Apolo, você é o preferido.

Apenas para não esquecer - Cícero Magerlânio
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Roubei isso do blog do Cícero Magerlânio - este que sempre será o preferido de Apolo -, depois de acordar dentro de um sonho ruim, estranho, e ser tomado por pensamentos longos e silenciosos. E fico tentando ao máximo pensar que tudo nesta vida faz um sentido, mesmo que estranhamente.

sábado, 1 de novembro de 2008

PARTINDO PARA YUKON HO

Quanto tempo dura uma infância, até a grande queda que é a idade adulta? Jorge Cardoso diz que: “A criança, toda criança, habita o paraíso por seis anos. Depois é uma descida vertiginosa ao inferno, vamos caindo e batendo, e em cada pedaço de pedra vez por outra encontramos uma brisa que refresca. E rimos.” Estaria ele certo?
Já não sou mais criança, e muitos ainda dizem que sou um menino. Talvez estejam certos. Se me pegassem visitando um revistaria de quadrinhos e saindo de lá com quarenta reais a menos no orçamento mensal e com livros de quadrinhos dentro dos bolsos, isso faria mais sentido?

Yukon Ho! É o novo livro de tiras que a Editora Conrad lançou por esses tempos com as estórias fantásticas do menino Calvin e seu amigo Haroldo. Calvin é um menino de seis anos, hiper-ativo, que tem como melhor amigo Haroldo, um tigre de pelúcia. Quando Calvin está perto de humanos, seu pai ou sua mãe, Haroldo é um mero brinquedo de pelúcia. Mas quando Calvin fica sozinho, o tigre de pelúcia se transforma em seu amigo imaginário de aventuras.

Criado pelo quadrinista Bill Watterson, Calvin e Haroldo são a figura da idéia do menino e seu amigo imaginário, do menino com seu próprio mundo, sua cabeça, sua mente, sua imaginação. Calvin passa dias de verão brincando com Haroldo, conversando, mostrando ao seu tigre de pelúcia suas idéias sobre o mundo em que vive, e o menino encontra na amizade imaginária um mundo próprio, um tipo de salvação. Lança-se para uma viagem para Yukon Ho, uma terra onde a liberdade prevalece: “Pegue o trenó, meu velho amigo felino fiz um lanche pra gente levar/ estamos prontos, e o nosso destino é partir e não mais voltar. Yukon é onde queremos morar! Não há outra alternativa/ lá vamos gritar e xingar e agir de maneira primitiva. E àquela escola nefasta não mais iremos voltar. Aos professores tirânicos, um basta/ ninguém vai me ensinar a somar. Nada de regras pra nós! O tempo sem neve acabou. Já vão tarde os adultos bocós! Estamos partindo! Yukon Ho!" - Canta calvin com Haroldo em sua viagem para um tipo de passargada infantil.

O mundo de Calvin e Haroldo é tão complicado quanto o mundo de um adulto, os anseios e divagações que Bill Watterson coloca em suas tiras são reflexões sobre nossos anseios e divagações adultas; dinheiro, felicidade, paternidade, alegria, Deus... Watterson usa Calvin e seu tigre de pelúcia Haroldo para daí criar reflexões sobre nossa condição de adultos.


Yukon Ho! com Calvim e Haroldo são uma ótima companhia.


Yukon Ho! As aventuras de Calvin e Haroldo por Bill Watterson - 127 páginas
Editora Conrad
Tradução: André Conti